16/10/2013

Filmes que Marcaram: David Lourenço, Narrador Subjetivo



 Repulsion (1965)





Repulsion saiu em 1965 e foi na altura o primeiro filme falado em inglês rodado por Roman Polanski, com Londres como cenário. O realizador havia de inclui-lo numa trilogia pouco formal sobre terror urbano e mistérios em habitações citadinas, Rosemary's Baby e Le Locataire a completarem-na. É a sua realização, aliada ao perfeito conhecimento da história, ou não tivesse Polanski ajudado a escrevê-la, que fazem Repulsion ir além do simples medo, e levar-nos a mergulhar no horror, na proximidade da personagem principal, expor-nos à sua demência, até nos mais privados cenários e íntimos pormenores. É um dos retratos mais criativos e vívidos de uma neurose alguma vez perpetrados no cinema.



Não se deixem enganar pela aparente displicência com que Catherine Deneuve parece passarinhar-se em frente das câmaras de início. Esse é o pior erro que se pode cometer, porque ela quer que nos sintamos atraídos, que apenas vejamos Carole como um objecto, como a maioria dos homens por quem passa quando caminha pelas ruas da capital inglesa. Talvez comecem a pensar "este filme é um bocado aborrecido, mas pelo menos tem um bom corpo em todas as cenas." É aí que Polanski nos leva para o seu apartamento, para o seu quarto, para a sua cama, e, eventualmente, para a sua mente. Estamos tão perto de Carole, que, quando percebemos a sua natureza psicopática, talvez queiramos fugir, mas não é possível (tal como não haverá para dois homens que se cruzam com ela) e, por isso, só nos resta olhar e rezar para que alguém nos venha salvar (mas será que alguém virá salvar os tais dois espécimenes masculinos?).


Para além de funcionar como uma espécie de espiral de insanidade, Repulsion atreve-se a instigar fantasias, a mostrar fantasias, e a destrui-las. Porque Carole parece incapaz de se libertar da sua auto-repressão, afasta-se constantemente do contacto de outros, em especial de homens. Claro, continua com os seus desejos, mas povoa-os com elementos negativos, de escuridão, de violência, de violação, que reforçam o seu afastamento (físico e mental) de quem quer estar com ela, mesmo que as suas intenções sejam sinceras, como é o caso de Colin (John Fraser).


Carole trabalha num salão de beleza (onde apenas tem companhia feminina), onde ouve histórias sobre comportamentos inapropriados de homens todo o dia, almoça sozinha (quando Colin não a interrompe), e passa o resto do dia em casa, onde vive com a irmã Hélène (uma mulher com uma vida sexual muito activa). As banalidades do dia-a-dia chateiam-na, mas não as consegue evitar. De noite vê o desmoronar da sua sanidade como se do da sua casa se trata-se: raios de luz ameaçadores penetram pelas janelas, as divisões parecem mudar de dimensões, as paredes racham ameaçadoramente. Quando Hélène (Yvonne Furneaux) se ausenta para umas férias com o seu amante actual em Itália, Carole fica sozinha. Ela sente que não deve ser deixada sozinha, pede à irmã para não ir, mas não se consegue exprimir convenientemente, nem a irmã adivinha o que se poderá passar.


Não demora muito para que Polanski encha o ecrã com imagens perturbadoras, projectadas maioritariamente com um silêncio ensurdecedor, do seu isolamento, da exteriorização da sua loucura. O andar começa a parecer uma pocilga, ela falta ao trabalho e Colin esmorece por não a ver, até que decide visitá-la. Carole nunca pensou que ele o fizesse. Colin força a entrada, berra, parte a porta, na sua ansiedade, e, envergonhado com a sua excitação, acaba por começar a explicar o seu amor por ela. Mas, para Carole, esta demonstração da irracionalidade a transbordar de testosterona (como Robin Williams disse uma vez "o problema é que Deus deu ao homem duas cabeças, e só sangue suficiente para usar uma de cada vez"), é pretexto para a catarse de todo o seu ódio. Sem emitir um som ou mudar a sua expressão facial, depois de uma confissão de quebrar o coração de alguém que a ama, Polanski desconstrói as pieguices dos romances de Hollywood, que a uma cena destas seguiriam uma beijoca, e faz Carole pegar num candelabro, e rebentar o crânio de Colin.



A partir daí já não há volta a dar. As convenções do mundo normal e a sua misoginia não entraram, estão do lado de fora destas paredes. Mas nós estamos do lado de dentro. O filme transforma-se num inferno a preto e branco. Deneuve agarrou-nos, e vai rebentar a nossa cabecinha também, enquanto nos vai deixando ver o que se passa na sua. Espera, esperamos que algo aconteça, que ela se suicide, que a polícia a prenda, que um trovão caia no prédio e tudo acabe. Polanski acaba por resolver de forma simples e tensa, quando as alucinações de Carole estão já totalmente difusas entre a realidade, e fecha com um pequeno zoom in que, inexplicavelmente, parece resumir todo a vida de Carole e as origens da sua enigmática personalidade.


Algo que me impressionou muito é a gestão do silêncio, que considero ser difícil de tornar eficaz no cinema. No entanto, muito à semelhança de outro génio europeu, Ingmar Bergman (que, apropriadamente, tem um grande trabalho intitulado apenas "Silêncio" - Tystnaden, 1963), Polanski aponta a câmara, põe os actores a trabalhar, e o movimento combinado de todos os elementos transmite brilhantemente a essência de cada sequência, neste com uma particularidade ainda mais distinta: uma fluidez de imagem, fotografia perfeita, com takes longos, ângulos estranhos e vários tipos de câmaras diferentes, que não se via realizador nenhum empregar antes dos anos 70 (querem ver um filme com mais de 40 anos com câmaras de mão? Look no further, muito mais bem utilizadas do que no presente).

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